André Petry, o colunista de Veja, é um exemplo de ateu militante. Eu respeito os ateus militantes. Só não pode ser cretino. Só não pode dar um nó na lógica para confundir o leitor. O cheiro da trapaça intelectual merece ser combatida. Neste sentido, Petry é um fenômeno. Vejamos o que escreve o militante em seu último artigo – "É pesquisa (ou lixo)" - publicado em Veja:
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“Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal decide um dos temas mais relevantes de sua história. Os ministros dirão se é válida ou não a Lei de Biossegurança, no trecho que autoriza a pesquisa de células-tronco de embriões humanos estocados em clínicas de fertilização. Pela lei, os embriões têm de ser inviáveis ou estar há pelo menos três anos congelados. Em qualquer caso, exige-se a permissão dos donos. Como as células-tronco embrionárias são o mais promissor caminho para vencer doenças hoje incuráveis, a aprovação da lei foi saudada como um generoso convite à ciência, ao progresso e à vida.”
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Reparem na abordagem. Petry fala que “a aprovação da lei foi saudada”. Vejam que ele escolhe bem as palavras. A intenção é carimbar o pensamento divergente de minoria radical. Minoria esta alheia aos supostos avanços que a lei proporcionará. E falo em supostos avanços porque em discussão estão as implicações da adoção de tal lei, implicações estas que vão além da vitória contra doenças até então incuráveis. Petry prefere a síntese cretina: opor-se à lei, na verdade, significaria opor-se à cura de enfermos. Trata-se de um discurso delinqüente. Não fosse jornalista de Veja, poderia candidatar-se a Ministro da Saúde. Para Petry, defender a lei de Biossegurança implica defender o progresso e a vida. Quem diz o inverso, portanto, é logo associado à idéia do atraso e da morte. E vejam que, mais tarde, no mesmo texto, o valente condenará esse tipo de argumentação. Petry simplesmente omite o fato de que as pesquisas com células-tronco adultas tem tido grande sucesso terapêutico.
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“Mas aí apareceu o então procurador-geral Cláudio Fonteles, que entrou com uma ação no STF dizendo que a destruição de embriões era inconstitucional. Fonteles diz que os embriões, sendo resultado da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, são seres humanos no estágio inicial da vida. A Constituição protege a vida. Portanto, pesquisá-los, ou destruí-los, é como matá-los. E matá-los é inconstitucional. Pronto: a ciência virou sinônimo de assassinato, geneticistas viraram homicidas. Eis o beco obscuro em que a fé do procurador quer nocautear a ciência, o progresso e a vida.”
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É um trecho interessante. Aqui está o nó na lógica a que me referia. Petry acusa Fonteles de fazer justamente aquilo que Petry faz com ... Fonteles. Vejam que no primeiro parágrafo é Petry que se encarrega de associar os que se colocam contra a lei ao atraso e à morte. Petry está querendo enganar o leitor. E isso fica ainda mais claro na última frase: “Eis o beco obscuro em que a fé do procurador quer nocautear a ciência, o progresso e a vida”. Ora, se a fé quer nocautear a ciência, o progresso e a vida, então pronto: a fé virou sinônimo de ignorância, atraso e – acreditem – morte.
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“O procurador não apresentou a questão capciosa porque é mau ou diabólico. Apresentou-a porque é um católico ardente. Nessa condição, propôs um dilema que pertence à pauta religiosa, e não à sociedade laica. Lamentavelmente, confundiu a Constituição com a Bíblia. Disfarçou, claro. Na ação ao STF, ele lista cientistas que defendem sua tese, mas omite que são católicos militantes. Um é da CNBB. Outro é da Academia Pro Vita, do Vaticano. Seis assinam obra da Pastoral Familiar. Os estrangeiros pertencem à reacionaríssima Opus Dei. Fonteles esconde tudo isso do leitor.”
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Reparem na trapaça. Petry tenta passar a idéia de que a sociedade é laica. Coisa nenhuma. Laico é o Estado. A sociedade brasileira, ao contrário do diz o ateu militante, é religiosa. Composta em sua maioria por católicos. Para Petry existem duas pautas: uma laica e outra religiosa. Esta não deve se meter naquela. Trata-se de uma estupidez incrível. A não ser que Petry ache que a ciência deva caminhar sem respeitar qualquer código moral, é óbvio que a religião, somada a inúmeras outras estâncias sociais, colabora com o debate do qual decorre a ética que norteia a sociedade, inclusive o trabalho de cientistas. Lamentavelmente, Petry confundiu seu livro besta de ódio à religião com a Constituição. A definição de quando começa a vida tem implicações jurídicas, inclusive no que diz respeito a sucessão, e é assunto pertinente ao mundo jurídico. Mundo este caracterizado pela interpretação das normas, interpretação esta que sempre será norteada pela cultura. Estaria a sociedade limitada às definições que a ciência é capaz de nos fornecer? Estaria a sociedade impedida de discutir quando começa a vida contando, para tanto, da cultura que a caracteriza, apenas porque a ciência é incapaz de uma definição exata sobre o assunto?
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“Esconde porque, fora dos cânones divinos, o que realmente interessa – já que não sabemos quando começa a vida – é o destino de milhares de embriões humanos estocados nas clínicas de fertilização: a lata do lixo ou o laboratório de pesquisa? A resposta é óbvia. Óbvia até para crentes que, não sendo dogmáticos, distinguem o mundo real do encantamento mágico. É o que mostra pesquisa ainda inédita, reproduzida aqui, feita pelo Ibope por encomenda do grupo Católicas pelo Direito de Decidir: 95% dos católicos defendem a pesquisa de células-tronco embrionárias e 94% dos evangélicos pensam do mesmo modo. Belíssimo.”
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Petry é mesmo um trapaceiro intelectual. Em certo trecho, afirma que Fonteles omite que são católicos militantes os cientistas que se opõe a lei de Biossegurança. Pois bem. Petry não chega a omitir, mas também não esclarece - como se espera de um jornalista sério - que o tal Grupo de Católicas pelo Direito de Decidir, que encomendou a tal pesquisa, não passa de uma organização anticatólica. O nome “católica” é estratégico para confundir o público. Como bem explica o Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, o objetivo do grupo é infiltrar-se nas paróquias, nas dioceses, nas universidades católicas, nos meios de comunicação, nas casas legislativas a fim de dar a entender que é possível, ao mesmo tempo, ser católico e defender o direito ao aborto. Ora, se sobre os cientistas de Fonteles pesa a suspeição da militância católica, sobre o grupo de Petry pesa a suspeição da militância anticatólica.
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“Como é próprio dos crentes mais inflexíveis, Fonteles sonha com um país laico ajoelhado diante de suas convicções religiosas. Mas, para o bem da ciência, do progresso e da vida, há que torcer para que o STF mantenha a Lei de Biossegurança em pé. Ou, para ficar na língua que o procurador entende, Deus queira que o STF seja iluminado nesta semana.”
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Só me resta dizer que, como é próprio dos ateus mais inflexíveis, Petry sonha com um país católico ajoelhado diante da onipotência da ciência em relação a todas as outras estâncias sociais. Toda Poderosa, ela decidiria sobre tudo, inclusive sobre o que é atraso e progresso ou morte e vida.