domingo

A "vontade soberana do povo" não existe

Após a lição real do rei da Espanha e as recentes investidas do ditador venezuelano contra o seu povo, ouve-se aqui e acolá, sobretudo da elite pensante que passeia pelos espaços da mídia onde se travam as "melhores" discussões acadêmicas, que deve ser respeitada a "vontade soberana do povo". Trata-se a expressão com um certo rigor absolutista. Ela seria válida em qualquer situação. No caso, legitimaria a suposta escolha do povo venezuelano pela perpetuação de Chávez no poder. Ignorados seu conteúdo acadêmico e resultados práticos, a expressão empresta ao seu emissor um certo charme progressista. Afinal, boa gente de verdade, para os iluminados, está com o povo (e não pelo povo, entendem?).

Não existe a tal "vontade soberana do povo" senão aquela assim definida e delimitada pelo sistema democrático que a torna realidade. Ora, não há que se falar em "vontade soberana do povo" em sistemas autoritários. Não há que se falar em "vontade soberana do povo" em sistemas que combatem a liberdade de expressão. Não há que se falar em "vontade soberana do povo" em sistemas que suprimem a divergência e a oposição ao poder. Isso porque a própria noção de "vontade soberana do povo" nasce da liberdade de expressão, do respeito à divergência e da oposição ao poder. Tais direitos não só são o berço da tal "vontade soberana do povo", mas guardiões dela.

Assim, utilizando-se de mecanismos primários de lógica, deduzimos que qualquer "vontade soberana do povo" tendente a subtrair o código de leis que garantem a expressão e exercício de tal vontade não pode ser respeitada, mas deve ser rejeitada e combatida com toda a força e vigor.

A “vontade soberana do povo”, quando traduzida em atos que visem à destruição dos pilares da democracia, não pode ser respeitada, pois afronta as garantias constitucionais que dão sentido mesmo a elas e, ainda, submetem indevidamente a minoria. E uma democracia não se faz só pela vontade das maiorias, mas também pelo respeito aos direitos individuais das minorias. É o mundo civilizado possível. Convido os iluminados a sugerir outro melhor.

Por que a esquerda combate o filme “Tropa de Elite”?


Em 2002, quando José Padilha lançou o filme “Ônibus 174”, que trata do seqüestro de um ônibus em plena zona sul do Rio de Janeiro, a esquerda se alvoroçou. O motivo do alvoroço? Padilha teria provado através do filme a explicação esquerdista para a violência: miséria e invisibilidade social. Os engajados não perderam a oportunidade de alçar a película à condição de tratado sociológico. Padilha passou a ser apresentado pelo esquerdismo como “especialista em segurança pública”. O jornalismo “golpista e direitista” caiu na conversa mole. O próprio diretor acreditou na farsa e saiu pela mídia “contribuindo com o debate”, seja lá o que isso significa. Aqui mesmo no Mackenzie, o grupo Práxis chegou a exibir o filme. Era apresentado como “visão crítica” da realidade. Para os iluminados, o filme integra a longa lista de um tal cinema alternativo, seja lá o que isso significa (já me disseram que é um cinema com espírito "calça jeans furada”). Pouca gente viu o filme, que tem lá seus méritos. Padilha não provou a tese da pobreza como origem da violência, como afirma a esquerda, mas deu sinais de ser um excelente diretor.

Então, Padilha volta. Agora, com “Tropa de Elite” (2007). Um sucesso como há muito não se via no cinema nacional. Não lembro de ter visto um filme brasileiro tão procurado. Prova de que o que falta ao cinema nacional não são esmolas - seja para o produtor, seja para a audiência -, mas respeito, qualidade e visão de mercado. E como o filme foi recebido pelos que antes louvavam José Padilha? Como lixo fascista, conspiração da direita para impor os valores da repressão, mentira deslavada etc. O herói da esquerda virou vilão.

A pregação esquerdista a favor de “Ônibus 174” (2002) determinou o movimento contra “Tropa de Elite” (2007). Isto porque se o filme de 2002 é um tratado sociológico, o de 2007 também teria de ser visto como tal. Se o de 2002 foi defendido como verdade absoluta, o de 2007 teria de ser combatido como mentira deslavada. Se o de 2002 é bom porque mostra a suposta realidade que ninguém vê – só o esquerdista –, o de 2007 é mau porque mente sobre a realidade e estimula a violência. Já é uma bobagem considerável falar em “realidade” quando estamos tratando – ora vejam – de filmes. No máximo, a realidade dá algum sentido à ficção. Nada mais. Porém, bobagem maior é supor que a sociedade é incapaz de entender a diferença entre ficção e realidade. Como se, de uma ora para outra, o público passasse a aprovar o método do saco (quem assistiu ao filme sabe do que estou falando) só porque gostou do filme.

Boa parte das críticas ao filme mira o personagem Capitão Nascimento, que por sinal tem o mesmo sobrenome do personagem principal de “Ônibus 174” (2002). De certa forma, os "Nascimentos" - o Sandro de “Ônibus 174” (2002) e o capitão de “Tropa de Elite” (2007) – são apresentados como símbolos de um mesmo problema. Volto ao Capitão do Bope. A esquerda acredita – ou finge que acredita – que o personagem estimula a sociedade a dar carta branca à polícia, endossando, assim, truculência e tortura. Mas a verdade é que o personagem é apresentado ao público com todos os seus vícios e virtudes. O dilema inescapável é que ele, apesar da entrega absoluta ao arcabouço moral do Bope, quer deixar o batalhão. O público entende o paradoxo. É a esquerda que finge não entender. O que encanta o público no personagem não são os vícios do capitão, mas as virtudes. O que empolga o brasileiro é ver Nascimento, apesar de tudo, tratar bandido como bandido, sem condescendências, sem os limites impostos por nossa consciência culpada, como bem escreveu Contardo Calligaris. O brasileiro cansou da narrativa que procura emprestar misticismo e um ar romântico ao banditismo.

Insatisfeita com a suposta repercussão da cultura do Bope, a esquerda passou, então, a defender o que seria “a grande crítica” do filme, como se este se prestasse ao exercício primário de identificar a “moral da história”. Mais uma vez, a mídia “golpista e direitista” caiu na conversa mole. Para os iluminados, “a grande crítica” do filme é a ineficácia de se combater a violência com mais violência. Trata-se de pura mistificação. O bom de “Tropa de Elite” (2007) é justamente a ausência da tal “a grande crítica”, que sempre se revela uma doutrinação. Sem deixar de lado os preconceitos, paradoxos, as verdades, mentiras, angústias e aflições que consubstanciam a visão da polícia sobre o tema violência, o filme prefere expor nas telas imagens e impressões do combate entre uma polícia incorruptível e a criminalidade, despidas do discurso politicamente correto, à "explicação" da violência. Padilha deixou para o público as escolhas morais. Sem dizer sim à truculência da polícia, o público escolheu dizer não à cultuada visão romântica do banditismo. Enfim, o público prova que não gosta de ser alvo do adestramento sociológico promovido pelo bom mocismo da crítica engajada. Se o filme é bom, vai ao cinema, seja ele nacional ou estrangeiro.
A verdade, dura para a esquerda, é que o sucesso do filme não se explica pelo seu suposto “direitismo”, mas pelo seu não-esquerdismo. O que deixa a esquerda furiosa é que, com “Tropa de Elite” (2007), “Ônibus 174” (2002) deixa de ser uma verdade absoluta. O que a esquerda não admite é que, entre o cinema que doutrina uma moral e o cinema que simplesmente dramatiza, o público escolheu este último.